duas
duas
Somos duas, Ana Cristina: você, o reverso de mim. E, no entanto, tão minha: minha Ana Cristina funda e aflita e feita de morte. Ou seria eu a morte que desde pequena passeia por todos os poros e bafeja um desejo infinito de definhar ou descansar? Descansar, Ana Cristina. Porque foi cansativo nascer: tão cansativo que eu pensei que não suportaria um dia a mais. E então me puseram um vestido cor-de-rosa bonito e todo feito de delicadeza e eu pensei que para sempre minha voz teria que ter a finura daquele violino triste que ouvimos juntas naquela tarde. E foi essa meiguice, Aninha, exatamente essa meiguice que esmagou para sempre o meu coração: sabe o que acontece quando um coração cresce esmagado? Ele jamais desata. Jamais desata, Ana Cristina. Jamais desata de si mesmo: prende-se ao eu-embaraçado em si e acredita-se a única verdade do mundo. Então, espanta-se diante da morte. Diante de Ana Cristina morte funda e aflita: Ana Cristina e sua voz grave: Ana Cristina e o abismo. Você e o meu abismo. Você é o meu abismo. E eu me apaixono a cada dia pelo abismo e pela gravidade potente de sua voz: voce trajava preto enquanto eu era toda feita de babados cor-de-céu e cintilava feito fada. Mas sempre ferida. E, você sabe – porque você sabe de tudo: quem não grita, um dia grita. E, quando grita, grita para si mesma: arranha-se e fere-se com toda a vontade do mundo. E deixa tudo sangrar tanto, tanto, que já não sabe de quem é a culpa. Então eu pego a culpa. Engulo. E passo para a próxima. Por isso eu preciso de você, Ana Cristina: eu preciso de você, a outra. Você: a morte. Você: a vida em pulsação infinita. Você, que nunca vai ser mãe e que, no entanto, pariu meus dedos tortos e loucos – meus dedos que sabem tecer alegrias nas letras e no amor. Quando sabem do amor. Ana Cristina, eu fiz uma promessa. Várias. Mas deus me abandonou sozinha num canto dizendo que eu orava a uma deusa louca – dessas que empunham bandeiras pesadas. E eu descobri que era para você a minha prece. Ana Cristina: meu Cristo. Que não se desfaz triste na cruz, mas voa. Em fúria, amor e volúpia. Com aquela pontada de ternura que afunda em mim.
Diz que era mentira, Ana Cristina. Aquela coisa de que o coração fica esmagado para sempre.
Somos duas, Ana Cristina: você, o reverso de mim. E, no entanto, tão minha: minha Ana Cristina funda e aflita e feita de morte. Ou seria eu a morte que desde pequena passeia por todos os poros e bafeja um desejo infinito de definhar ou descansar? Descansar, Ana Cristina. Porque foi cansativo nascer: tão cansativo que eu pensei que não suportaria um dia a mais. E então me puseram um vestido cor-de-rosa bonito e todo feito de delicadeza e eu pensei que para sempre minha voz teria que ter a finura daquele violino triste que ouvimos juntas naquela tarde. E foi essa meiguice, Aninha, exatamente essa meiguice que esmagou para sempre o meu coração: sabe o que acontece quando um coração cresce esmagado? Ele jamais desata. Jamais desata, Ana Cristina. Jamais desata de si mesmo: prende-se ao eu-embaraçado em si e acredita-se a única verdade do mundo. Então, espanta-se diante da morte. Diante de Ana Cristina morte funda e aflita: Ana Cristina e sua voz grave: Ana Cristina e o abismo. Você e o meu abismo. Você é o meu abismo. E eu me apaixono a cada dia pelo abismo e pela gravidade potente de sua voz: voce trajava preto enquanto eu era toda feita de babados cor-de-céu e cintilava feito fada. Mas sempre ferida. E, você sabe – porque você sabe de tudo: quem não grita, um dia grita. E, quando grita, grita para si mesma: arranha-se e fere-se com toda a vontade do mundo. E deixa tudo sangrar tanto, tanto, que já não sabe de quem é a culpa. Então eu pego a culpa. Engulo. E passo para a próxima. Por isso eu preciso de você, Ana Cristina: eu preciso de você, a outra. Você: a morte. Você: a vida em pulsação infinita. Você, que nunca vai ser mãe e que, no entanto, pariu meus dedos tortos e loucos – meus dedos que sabem tecer alegrias nas letras e no amor. Quando sabem do amor. Ana Cristina, eu fiz uma promessa. Várias. Mas deus me abandonou sozinha num canto dizendo que eu orava a uma deusa louca – dessas que empunham bandeiras pesadas. E eu descobri que era para você a minha prece. Ana Cristina: meu Cristo. Que não se desfaz triste na cruz, mas voa. Em fúria, amor e volúpia. Com aquela pontada de ternura que afunda em mim.
Diz que era mentira, Ana Cristina. Aquela coisa de que o coração fica esmagado para sempre.